quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Onde está o nevoeiro desta terra ?

Soneto do Amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano

O amigo: Um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica

Vinicius de Moraes

Inscrito no Livro de Lembranças !


 AMCL, 30-06-1957 - 07-02-2022 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Façamos uma limpeza geral - Amália Bautista


Façamos uma limpeza geral,

vamos deitar fora todas as coisas

que não nos servem para nada, essas

coisas que já não usamos, as que

não prestam senão para ganhar pó,

e em que tentamos nem reparar porque

nos trazem as lembranças mais amargas,

coisas que magoam, que ocupam espaço

e nunca quisemos perto de nós.

Façamos uma limpeza geral,

ou melhor ainda, uma mudança,

deixando para trás todas as coisas

sem lhes tocarmos, sem nos sujarmos,

deixemo-las onde sempre estiveram,

vamo-nos nós embora, vida minha,

e recomecemos a acumular.

Ou vamos deitar fogo a tudo isto,

vamos ficar em paz com essa imagem

das brasas do mundo perante os olhos

e com o coração desabitado.



                                Façamos uma limpeza geral -                                                            Amália Bautista

sábado, 24 de julho de 2021

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras

 

-Então, Sr. Dias, o que o traz por cá?

-Dr. não sei o que se passa... não sei bem explicar. Tenho o pulso acelerado. É uma sensação forte, sinto o coração muito cheio. Tão cheio como se estivesse na eminência de se partir ao meio.

- Vamos ver o que se passa. Abra a camisa...Inspire... é aqui a queixa?
- Na realidade não me queixo de nada. A minha mulher é que se queixa. Diz que não é normal viver assim. Que a maioria das pessoas sente um enorme vazio, uma sensação de vácuo no peito. Eu sou assim.
- Assim como? sente o coração cheio de quê, tristeza? ansiedade? O que é que faz no dia a dia?
-Não, nada. Não entendo. Durmo bem, tenho um trabalho exigente mas que me preenche, mulher, dois filhos, um cão, e gosto de ler. Ler ajuda-me a viver.
- E lê o quê? jornais? ...expire tudo... livros de auto ajuda?
- Leio livros. Na realidade todos os livros são de auto ajuda. A maioria ajuda-me a ler as pessoas. Principalmente os livros de poesia. Esses são melhores de manhã, com o café. Outros ajudam-me a adormecer, geralmente os bons romances ou os clássicos. Depois, durante o dia, não passo sem um pouco de ficção.
- Vejo que é um leitor compulsivo. Outros vícios? álcool,.. tabaco...jogo, outras substancias?
- Gosto de viver no presente, Dr. Não procuro fugir à minha realidade. Apenas descobri em criança que ler me tornava os dias possíveis.
- Mas então em que é que o posso ajudar? Quando é que essa sensação de coração cheio se manifesta com maior intensidade?
- Não sei, Dr. A minha mulher e os meus filhos estão preocupados comigo. Até o meu chefe disse que eu devia ver o que se passa. Tenho 52 anos, e já acordo com aquela sensação de coração cheio. Dizem que já não tenho idade para isto. Preocupam-se que aqui a máquina não aguente. Depois de jantar o sintoma intensifica-se e sinto o peito prestes a rebentar. A sensação é tão forte que só me acalmo quando retomo a leitura ao serão.
- Toma alguma coisa, consome estimulantes?
-Não tomo medicação para nada. Ultimamente deixei de ler policiais e suspense à noite. Saboreio um bom clássico. É ótimo para a digestão. As vezes há romances indigestos. Alguns deviam ter as contraindicações anunciadas na contracapa: Perigo, pode conter acidez, fazer cair ilusões, ou arranhar expectativas. Outros, são como as laranjas serôdias, amargos e com pouco sumo. Prefiro-os carnudos e coloridos, como as cerejas, aí não consigo parar de ler como se, inesperadamente, me nascesse a primavera dentro do peito. No fundo, exatamente como as pessoas com quem nos cruzamos.
- Não sei o que lhe diga. A auscultação está ótima. Vou passar umas análises para ver se descobrimos o que se passa consigo. Entretanto, precisa de alguma receita?
- Nada Dr. Não preciso de nada. Talvez por isso poucos deem pela minha presença. Sou apenas um homem de meia idade que gosta de ler, livros e pessoas, e cujo peito não carrega qualquer vazio existencial ou tristeza exacerbada. Sinto o coração a pulsar de gratidão de manhã até à noite e aprecio todos os dias da minha existência. Os bons e os outros. Os ingleses têm para isto uma expressão perfeita: "To Cherish one´s life". Farei as analises como me pede, para tranquilizar os que me rodeiam. Pode ser que me descubram dador compatível com os que aguardam em lista um transplante urgente que preencha espaços vazios.
ENd


quarta-feira, 7 de julho de 2021

. . .

FotoSA
 


Aí você solta aquele suspiro, que parece descarregar a alma.

Caio Fernando Abreu


quinta-feira, 24 de junho de 2021

 



"Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar."


                               José Saramago, o conto da ilha desconhecida, Porto Editora, 17ª ed.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Nota do dia

 Fui vacinada. 

Vou tatuar no ombro esquerdo: 

Pfizer 2021 11h54

Aguardo agora na esperança de, em vez de ter efeitos secundários, ter efeitos especiais. Tipo cauda de sereia. Ou antenas. O que eu queria mesmo era perder a gordura abdominal. Ou então mais paciência, enquanto aguardo pela manifestação das opções anteriores.



Relaxa e trabalha ;-)


 

Acompanha bem com dias de chuva ...

 


domingo, 23 de maio de 2021

Ludovico Einaudi - Nuvole Bianche

Página 225



Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;

que me sento na cama, distraída, a dobrar demoras

e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.

Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por 

causa dos outros laços que não desfaço, sei que o 

amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se


o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;

que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso

sempre, mas não demais; e que os invernos que ele

não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos

separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,

mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires, 


diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.



Maria do Rosário Pedreira, Poesia Reunida, Quetzal poesia

O que fazem as mães ?


o que fazem as mães ?

abrem caminho

mas abrem caminho 

cegamente

não conhecem o túnel

o destino

a sombra que as enreda

mais à frente


T.K. Centeno, Cem Poemas Portugueses no Feminino, Terramar, pág, 149

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Eu, José, me confesso



O meu nome é José. Sou conservador do registo civil da cidade onde vivo, tal como foi o meu pai e o pai dele anteriormente. Tenho mulher e dois filhos adultos, que mal me conhecem. Quando virem isto, já terão lido muitas coisas sobre mim. Por isso quero explicar-me, para que saibam a verdade. As pessoas vão dizer que perdi a cabeça, que me fizeram uma lavagem ao cérebro, que não estou bem, que foi o ódio que me arrastou para as linhas tortas em que me encontro. Mas não é bem assim. Na vida não há só bons e maus. Nem na vida nem do outro lado dela, para onde todos caminhamos à distância de um averbamento e de onde ainda achamos poder comandar o que se passa nesta, ditando testamentos e últimas vontades. Até hoje fui apenas um homem de ego apagado, um escrevente público ao invés de escritor, num campo de batalha de certidões e laudos invariavelmente abandonado às 17 horas, com as mãos e a roupa manchadas de tinta. Escrevo, com a certeza de que os meus leitores e eu nunca nos encontraremos na mesma página.
Escrevo, na solidão e segurança do arquivo que guarda todas as vidas e mortes desta terra. Lido com vidas reais e não personagens vazios, registando-os, conferindo-lhes a autenticidade que anseiam, incapazes que são de a alcançar de outra forma. Professo a fé pública que me foi conferida, a única que conheço, que me dá acesso a segredos inconfessáveis que resumo em folhas timbradas, entrincheirado da prolixa realidade pela segurança das estantes cinzentas e da obsolescência administrativa. Lá fora, as vidas fora do papel assumem-se como borrões de tinta, feridos de nulidades, relatos hediondos, pejados de pormenores banais e mesquinhos que apenas servem para lhes retirar consistência.
Aqui, zelo tranquilamente por cada uma delas. Ordeno-as. Limpo-as de casamentos já expirados, altero-lhes o nome de acordo com o requerimento, averbo-lhes descendência, purgando todo e qualquer pormenor irrelevante. Mas hoje, escrevo pela última vez. Sobre a única vida que sobra, inalterada, neste registo. A minha. Esta é a minha história.
End