sábado, 24 de julho de 2021

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras

 

-Então, Sr. Dias, o que o traz por cá?

-Dr. não sei o que se passa... não sei bem explicar. Tenho o pulso acelerado. É uma sensação forte, sinto o coração muito cheio. Tão cheio como se estivesse na eminência de se partir ao meio.

- Vamos ver o que se passa. Abra a camisa...Inspire... é aqui a queixa?
- Na realidade não me queixo de nada. A minha mulher é que se queixa. Diz que não é normal viver assim. Que a maioria das pessoas sente um enorme vazio, uma sensação de vácuo no peito. Eu sou assim.
- Assim como? sente o coração cheio de quê, tristeza? ansiedade? O que é que faz no dia a dia?
-Não, nada. Não entendo. Durmo bem, tenho um trabalho exigente mas que me preenche, mulher, dois filhos, um cão, e gosto de ler. Ler ajuda-me a viver.
- E lê o quê? jornais? ...expire tudo... livros de auto ajuda?
- Leio livros. Na realidade todos os livros são de auto ajuda. A maioria ajuda-me a ler as pessoas. Principalmente os livros de poesia. Esses são melhores de manhã, com o café. Outros ajudam-me a adormecer, geralmente os bons romances ou os clássicos. Depois, durante o dia, não passo sem um pouco de ficção.
- Vejo que é um leitor compulsivo. Outros vícios? álcool,.. tabaco...jogo, outras substancias?
- Gosto de viver no presente, Dr. Não procuro fugir à minha realidade. Apenas descobri em criança que ler me tornava os dias possíveis.
- Mas então em que é que o posso ajudar? Quando é que essa sensação de coração cheio se manifesta com maior intensidade?
- Não sei, Dr. A minha mulher e os meus filhos estão preocupados comigo. Até o meu chefe disse que eu devia ver o que se passa. Tenho 52 anos, e já acordo com aquela sensação de coração cheio. Dizem que já não tenho idade para isto. Preocupam-se que aqui a máquina não aguente. Depois de jantar o sintoma intensifica-se e sinto o peito prestes a rebentar. A sensação é tão forte que só me acalmo quando retomo a leitura ao serão.
- Toma alguma coisa, consome estimulantes?
-Não tomo medicação para nada. Ultimamente deixei de ler policiais e suspense à noite. Saboreio um bom clássico. É ótimo para a digestão. As vezes há romances indigestos. Alguns deviam ter as contraindicações anunciadas na contracapa: Perigo, pode conter acidez, fazer cair ilusões, ou arranhar expectativas. Outros, são como as laranjas serôdias, amargos e com pouco sumo. Prefiro-os carnudos e coloridos, como as cerejas, aí não consigo parar de ler como se, inesperadamente, me nascesse a primavera dentro do peito. No fundo, exatamente como as pessoas com quem nos cruzamos.
- Não sei o que lhe diga. A auscultação está ótima. Vou passar umas análises para ver se descobrimos o que se passa consigo. Entretanto, precisa de alguma receita?
- Nada Dr. Não preciso de nada. Talvez por isso poucos deem pela minha presença. Sou apenas um homem de meia idade que gosta de ler, livros e pessoas, e cujo peito não carrega qualquer vazio existencial ou tristeza exacerbada. Sinto o coração a pulsar de gratidão de manhã até à noite e aprecio todos os dias da minha existência. Os bons e os outros. Os ingleses têm para isto uma expressão perfeita: "To Cherish one´s life". Farei as analises como me pede, para tranquilizar os que me rodeiam. Pode ser que me descubram dador compatível com os que aguardam em lista um transplante urgente que preencha espaços vazios.
ENd


quarta-feira, 7 de julho de 2021

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FotoSA
 


Aí você solta aquele suspiro, que parece descarregar a alma.

Caio Fernando Abreu