terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Da fragilidade do que vale a pena

Estranho livro aquele que escreveste! Triste...
-Foi o possível, tranquei-me em casa, numa noite de pandemia, aconcheguei-me debaixo das escalas pentatónicas do BB King e do Ray Charles e só saí depois de esvaziar uma London dry que me devolveu liquidez ao raciocínio, e me permitiu desatar, devagarinho e com verdade, a sexta nota no violão.
-O que é que te passou pela cabeça?
-Isso mesmo. O que me passou? Que tudo no mundo passa, tudo é frágil e efémero, como uma nota blue.
Sabe-se lá de onde um beijo vem. Sabe-se lá para onde o silêncio vai, quando calamos o que sentimos.
- E chegaste a alguma conclusão?
-Provavelmente, para o mesmo lugar. Um prestes a partir e outro quase a chegar, sem, no entanto, nunca se encontrarem. Se isso acontecesse, se algum dia se cruzassem, seria perigoso, já pensaste?
Há-de haver algures, numa estação perdida em algum lugar do mundo, uma agulha que Alguém comande que impeça esse tipo de acidentes. Que recolha cuidadosamente, uma a uma, as palavras que ninguém ouviu, e desvie cada nota de perfume de jasmim desperdiçado no jardim deserto, para outra via. Um Entendimento mais que perfeito, que converta qualquer dissonância num acorde improvável, antes de o voltar a lançar ao vento. Um Maestro velho e bondoso, de ouvido atento, que interrompa as palavras cruzadas para dar atenção às desarmonias, afinando e reconduzindo carinhosamente cada nota solta a um novo lugar da partitura.
-Não estás a fazer sentido. Ninguém quer ler sobre isso.
-Pouco me importa que aquilo que escrevi naquela noite infinita desapareça aos primeiros raios de sol. Que as palavras firmes impressas a negro sólido desvaneçam, frágeis, sem deixar rasto, como as marcas da felicidade a dançar na areia, em noite de maré cheia. Tudo o que é eterno se compõe, decompõe e recompõe.
Só o que é frágil permanece indelével na nossa memória.
Eva Niceday
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